sábado, 24 de fevereiro de 2018

Perdi as contas de quantos comprimidos engoli, junto com a angustia.
Reconheço a dor, também física que assina no meu corpo, e conversa com a exaustão dessa existência comprimida.
Vesti roupas coloridas e recorri a maquiagens para compor um bem estar só aparente, combinando com a adequação ao relógio e ao calendário, nesses prazos desrespeitosos que ainda assim me sujeito. Quase um personagem, essa casca que me encaixa nesse convívio não humano, eficiente, adequada ao vencimento com holerite e vínculo empregatício, mergulhada entre emails e ligações não atendidas.
Insisto nessa teimosia de sorrir apesar de tudo, das intervenções, e esperas por horas nos pontos de ônibus, enquanto olho e me espanto com o contingente policial nas ruas, os ruídos das buzinas impacientes, em meio ao cenário de abandono da cidade.
Mais um comprimido para o estômago, outro para a garganta, outro para os hormônios, na fila alguns analgésicos, por graça ou displicência lembro dos efeitos da cachaça, uma pena fazer tanto estrago.
Outro dia vi uma foto, o espanto da criança, a artilharia pesada, e nem com doses dobradas de analgésicos engoli, a garganta permanece inflamada.
Quantas sementes posso germinar para manter viva a esperança? Isso não tem valor no mercado, nem agrega no currículo, muito menos é pontuado nos diálogos com a prestação de serviços, carimbo na minha escrita as facas que riscam a carne por dentro, enquanto torço para a árvore dar frutos, um tanto contraditório, mesmo assim tem mais sentido que a realidade.
A estética dos corpos, e também do vestuário, recurso que também utilizo, faz do íntimo também o circulatório, as pessoas em São Paulo raramente dizem bom dia, mas visivelmente se comunicam nesses nichos regulatórios. Na avenida Europa serei sempre uma estrangeira, sem visto de permanência.
Mais um comprimido para o refluxo, no estômago a cidade também buzina.
Passei semanas sem varrer o quintal, agradecendo por chover e poupar o trabalho de regar as plantas, assinalando no calendário mais um dia "vivido" enquanto guardava as compras do mercado, que provavelmente não terei tempo de sentar para comer.
O intestino humano tem em média de 6 a 8 metros de comprimento, com sua eficácia para produzir merda. Nos rios da cidade nenhum comprimido diminui a azia com o odor de São Paulo.
Todos os dias damos descargas sem perguntar para onde vão as merdas que fazemos, lavamos as mãos em nome da  boa higiene e seguimos engolindo as doses diárias de alimentos e água tratada.
Me espanto com a sanidade das pessoas, inclusive a mental, exceto nos dias que alguém apoia violência contra crianças, nesses acho adequado a ingestão de comprimidos e hábito de tomar a mesma água que pagamos para tratar, até porque as nossas merdas são toleráveis nos rios, nos seis a oito metros de intestino só temporariamente e de forma individual. Esse registro sobre problemas digestivos talvez seja mais um comprimido para o exercício diário de engolir, e digerir  a existência em São Paulo.

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